Carta ao (meu falecido) pai

“Desculpe pela demora, já faz 18 anos que tento te escrever e não consigo. O tempo do relógio não é igual ao do meu coração, e ainda dói, dói muito.”

Eu gostaria de poder conversar com meu pai, ele morreu quando eu tinha 10 anos. Queria perguntar pra ele se era feliz, se tinha orgulho de mim, mesmo eu o tratando igual a um capacho. Se acreditava que eu poderia me tornar um homem de quem ele teria orgulho, queria pedir desculpas por tê-lo odiado por tantos anos por ter morrido na casa da sua suposta amante e ter nos deixado trilhões de dívidas.

Queria dizer que eu o perdoei e que sinto muita falta dele. Que tem sido bastante difícil crescer sendo homem nesse mundo escroto sem a figura de um pai em quem me espelhar e apoiar. Que eu espero não tê-lo decepcionado na criação do meu irmão, porque eu era muito pequeno e fiz muita besteira, aquele negócio de ser pai era confuso demais, eu vivia apavorado de num saber imitá-lo direito, dava muito medo.

Que eu tenho tentado ser um pai de quem minha filha se orgulhe igual que eu me orgulhava dele, mesmo sem nunca ter-lhe dito que o admirava.

Que eu mentia pros meus amigos o fato de ele vender churrasquinho na rua, mais por achar meus amiguinhos uns ignorantes do que de verdade porque eu tivesse vergonha dele.

Que seu abraço foi e será pra sempre o melhor do mundo. Que eu fingia tentar me desvencilhar só pra fazer pose de homenzinho, mas que até hoje quando fecho os olhos consigo sentir o aconchego quentinho do seu corpo me protegendo e me apertando.

Que eu o achava um troncho por não falar muito, estar sempre quieto. Que eu pensava que ele não tinha um vocabulário rico e por isso silenciava, se expressava com gestos. E que eu me lembro do seu sorriso largo, da sua barba pinicante, da sua mão grande e forte que tomava a minha pra caminhar pelas ruas, que me recordo do arfar do seu peito, inchado e peludo, no qual eu repousava a cabeça pra escutar as batidas do seu coração. E ali eu dormia, era um lugar tão calmo e gostoso, era minha fortaleza. Hoje entendo que nunca fizeram falta suas palavras, seu alfabeto saía das mãos, do toque, não do dicionário.

Queria que ele soubesse que eu fiquei por seis meses, depois de sua morte, esperando na frente da porta do banheiro, mas que ele nunca saía de lá. E eu não pude mais continuar esperando e tive de abandoná-lo porque minha mãe tava sofrendo muito e meu irmãozinho não parava de chorar, eu decidi fingir ser forte e ocupar o vazio que ele deixou.

Queria que ele soubesse que, apesar d’eu gritar aos quatro cantos que se ele não tivesse morrido hoje eu seria ainda mais imaturo e mimado do que sou, na verdade não tem um dia em que ao pensar nele não sinta um buraco profundo no peito e deseje ter um jeito de trazê-lo de volta pra perto de mim, que o coração dói tanto que eu fico com falta de ar e engulo o choro.

Queria que ele soubesse que hoje eu finalmente consegui chorar, consegui me libertar dessa mágoa encravada no meu ser e me perdoar por não ter conseguido me despedir dele, nem ter chorado quando estava ao lado do seu caixão, nem ter ido visitar seus restos em todos esses anos. Consegui entender que a gente nunca precisou de nada disso, nem as suas nem as minhas palavras fizeram falta, na vida ou na morte. A gente sempre se entendeu por meio do olhar sincero, profundo e verdadeiro, do começo ao fim. Num precisamos dizer adeus porque a gente nunca se separou, ele continua vivinho da silva aqui dentro de mim. E eu sigo inconscientemente buscando imitá-lo pra que a sua existência nunca se apague da minha memória e pra que ele nunca deixe de existir.

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Homenagem tardia ao meu pai, Edvaldo Rodrigues de Lima, que morreu em 10/12/1999, em sua quinquagésima sexta volta terrestre ao redor do sol.

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